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Sergio Valério
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Crônicas
Os Talheres e a Alma

Sergio Valério

Ninguém gosta de lavar talheres, com exceção de César.
Tudo começou no dia 17 de abril de algum ano do século passado.
César estava sentado em uma das cadeiras da sala, enquanto talheres e mais talheres o esperavam na pia.
A festa havia sido divertida, mas depois que todos se foram, apenas haviam permanecido seus pensamentos e os talheres que todos haviam usado, mas que haviam “esquecido” de lavá-los.
As famílias às vezes têm o costume de alternar as funções, mas César morava sozinho e era sempre dele a missão de lavar os talheres, colocar o lixo para fora, entre tantas outras atividades da rotina de um apartamento.
César havia convidado seus amigos para o seu aniversário e, entre parabéns e presentes, ele considerava que tinha sido muito bom. Júlia viera. Cláudio, Ernesto, Silvia, Márcia, Juarez, Alberto, enfim, quase todos os seus amigos comemoraram o seu vigésimo sexto ano de vida.
Sentado na cadeira da mesa, ele fazia um mergulho em toda a sua vida e prorrogava o momento de se levantar para lavar os talheres.
O jornal do dia anterior estava ali ao seu lado e ele resolveu ler um pouco, antes de iniciar a chata tarefa.
O título de uma crônica chamou a sua atenção: Os Talheres e a Alma. César começou a ler.  No texto, o autor comentava:
“Quando for lavar os talheres, imagine que cada uma das peças é uma pessoa que você conhece. O prato branco pode ser sua mãe. O outro prato azul, o seu pai. Os garfos, seus irmãos. As colheres, suas irmãs. Os pequenos garfos e colheres, as crianças. Podem ser seus filhos, netos ou sobrinhos.
Pegue o prato branco que você imaginou ser a sua mãe. Manipule-o com carinho, faça a esponja passar por ele, como se realmente estivesse cuidando dele. Lembre-se que você o imaginou como se fosse a sua mãe. Você se lembra como ela cuidava de você? Era só carinho. O banho que ela lhe dava. O shampoo que passava em seu cabelo. Deixe cair a água sobre o prato branco. Repouse-o sobre a pia. Você se recorda da maneira com que a sua mãe lhe envolvia com a toalha? Deixe que o prato branco seque um pouco, antes de enxugá-lo”.
César sorriu. Lembrou-se de Ana, sua mãe, e continuou a ler:
“Agora é a vez do prato azul. É o seu pai. Pegue-o com cuidado. Quem não tem em sua memória o abraço de seu pai que parecia protegê-lo de todos os perigos do mundo? Segure o prato com cuidado. Você não pode deixá-lo cair ao chão. A esponja. A água. A poltrona que o seu pai, sentado, assistia a televisão. Era tão bom vê-lo ali, presente, não é mesmo? Observe por um instante as gotas de água que caem do prato azul, enquanto ele seca. Você se lembra que o seu pai não costumava chorar? Ele continha as lágrimas talvez para que você o visse como uma pessoa muito forte. Era a sua maneira de tentar ensiná-lo a ser firme o suficiente para não se deixar vencer pelos problemas da vida”.
“Os garfos. Imagine-os seus irmãos. Algumas vezes irmãos se “espetam”, demonstrando as suas diferenças, as vaidades naturais nos seres humanos que, às vezes, se sentem preteridos pelas suas mães e pais em sua tão solicitada atenção. Irmãos se amam, mas irmãos também disputam espaços. Lavar os garfos é como possibilitar que a esponja passe pelas pontas e consiga aliviar as diferenças e torná-las menos doloridas. Pode parecer difícil ou quase impossível harmonizar quando existe a mágoa, porém é preciso insistir no apaziguamento das discórdias e investir na paz. Lave os garfos e deixe-os na pia, antes de enxugá-los. As dores da mágoa necessitam de um tempo para se acalmarem.
As colheres agora esperam por você. Pegue-as com cuidado. Imagine-as suas irmãs. Elas esperam que você as compreenda, vendo-as como suas grandes amigas. Irmãs são eternas confidentes e sabem ouvir os nossos segredos. Podemos abrir os nossos corações com ela. Falar de nossas fraquezas, dúvidas e medos. Fazemos delas nossas segundas mães e por toda a nossa vida queremos confidenciar para elas os nossos mais intensos segredos. Irmãs são como colheres que parecem ter vindo ao mundo para nos oferecer sua sempre presente ajuda. Pedimos que elas nos compreendam e nem sempre as ouvimos. Queremos falar, falar e falar. Quando pequenos brigamos com elas, jogamos toquinhos e palavras tolas ao vento,sem saber que elas nos darão o apoio para nos tornarmos um pouco mais conhecedores da maneira de ser das mulheres. Sem irmãs, seríamos menos compreensivos com quem vamos escolher para ser a nossa companheira. É hora de lavar as colheres e deixá-las descansando na pia. Exigimos demais delas e agora é hora de deixá-las um pouco sem ouvir nossos problemas.
 Chegou a vez das pequenas colheres e garfos. Imagine-os seus filhos, netos ou sobrinhos. Ainda não cresceram o suficiente para terem que enfrentar a vida que poderá ser fácil ou difícil, dolorida ou tranquila. Por isso estão leves em seu peso. Sinta que são frágeis ainda, como se estivessem em formação para se tornarem grandes colheres e garfos no futuro. Crianças precisam de muito cuidado. Elas se tornarão aquilo que a fizermos ser. Para imaginá-las no futuro, basta multiplicar a forma como que as estamos tratando hoje. Ninguém será o que não foi. Seremos sempre aquilo que um dia fomos. É como se fossemos esculpidos em nossa infância e o que mais importa são os exemplos que vemos em nossa volta. Ninguém será o que não viu. Todos serão o que notaram nos outros, principalmente em seus pais, avós, tios ou pessoas próximas. Lave as pequenas colheres e garfos, com mais cuidado ainda. Elas esperam isso de você. O pano de prato será como a toalha que uma mãe, que um pai as envolverá para depois colocá-las, com todo carinho, no porta talheres, que são como berços para elas.
As panelas, as frigideiras também esperam que você as lave. Exigirão mais cuidado, esforço e dedicação. Imagine-as os seus problemas. Alguns parecem tão incrustados em você que nem palhas de aço conseguem arrancá-los de sua pele. É preciso descobrir o jeito certo de vencê-los. É necessário se dar um tempo para que a solução apareça. Mais que tudo é preciso se entregar nas mãos de Deus e deixá-lo estar presente dentro de você, para que a certeza se faça presente na escolha pelo caminho.
Se mais itens houverem para lavar, você pode imaginá-los seus amigos, seus desafetos e até pessoas que você jamais viu ou verá. Faça com eles aquilo que gostaria que eles fizessem com você. Trate-os com gentileza e amor. Nada mais útil e importante do que ser gentil com quem não conhecemos. Fazer o bem para aqueles que nos são próximos é muito fácil. Querer e fazer o bem para quem não é nosso próximo, aí sim se trata de verdadeira caridade. Rezar pelos nossos, é óbvio. Necessário, importante, mas apenas o trivial. Rezemos pelos que não conhecemos, pelos que vivem nas ruas, pelos que tem suas mentes confusas e que andam pelas trilhas, em desconcertante passo em direção ao nada”.
A crônica chegou ao fim e César levantou-se. Foi em direção a pia, certo de que queria vivenciar tudo o que a crônica sugeria. Os talheres pareciam olhar para ele. A água estava ali. O sabão. A esponja. Na verdade, tudo está ao nosso inteiro dispor.
Daquele dia em diante, César sempre foi o primeiro a se oferecer a lavar os talheres. Descobriu o quanto é importante, mais do que lavar os talheres, lavar a nossa alma.
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